“Você não é nada!!”
E de tanto escutar estas palavras da boca dos outros ela
inferiu que aquilo era uma verdade absoluta.
“Eu não sou nada!!”
E a transferência do pensamento para aquele pedaço de
papel regado à lágrimas era o cume de uma vida que lutava há muito tempo contra
uma asserção cirurgicamente colocada dentro da alma e reconhecida como
intrinsecamente sua. Contudo, teria ela as armas e os argumentos para vencer o
embate? Como seria possível vencera si mesma se o adversário em questão possui
exatamente as mesmas habilidades em seus mínimos detalhes? Certamente o empate
seria inevitável e a frase incrustrada como uma joia inestimável permaneceria
no mesmo lugar no qual colocaram. Além disso haviam os fatos e ela sabia que a
realidade é a pedra magna que se coloca em cima de todos os discursos e
ideologias.
Ela não era nada ou melhor ela era nada. E deveria ser diferente? Contaria alguma coisa todos os
seus sucessivos e incontáveis fracassos? Nem mesmo um risco numa calçada com
cimento fresco, ou uma parede suja com seu nome. Documentos são números e
números são exatos e por isso não refletem a inconstância do ser humano – não
contam como marcas. Mas e a história de uma pessoa, não poderia acaso já ser
considerada em si uma marca? As dores e os prazeres não seriam indícios de sua
escrita – mesmo que breve – no livro do mundo? Ela tentou procurar estas
páginas, mas não as encontrou em lugar algum: era a realidade enterrando suas
esperanças. Não havia provas de sua existência.
As pessoas temem desesperadamente a dor e o sofrimento,
mas os aceitam de bom grado se a única opção a eles for a extinção da
existência. Não digo a morte, mas a completa anulação de todo e qualquer
vestígio vital, seja ele material ou simbólico. É por isto que aquelas palavras
causaram tanto flagelo. O desespero de ler inúmeras vezes naquela folha a mesma
frase que ela própria rascunhava significava nada menos que o consentimento da
identificação com o que ela lia. Normalmente a última pessoa a negar a
existência de alguém é ela mesma. Este ato é o mesmo que assumir que todos
estão certos em negar o que já não existe, o último suspiro talvez de uma alma
cansada de seguir em vão. Não que as pessoas estejam sempre certas a respeito
dessas coisas mas como negar os fatos? Como deixar a realidade de lado? Não.
Certamente ela já não existia – existiu algum dia de fato?
Aquelas palavras só comprovavam as suspeitas: eram a
materialização do que até então ela não tivera a coragem de aceitar. E quanto
mais aumentava repetidamente a desesperadora asserção no fragmento de papel,
mais a sua existência tornava-se evanescente. Era como se a frase, replicada
inúmeras vezes por uma mão trêmula e fria tivesse o poder de concretizar aquela
constatação tão dilacerante. Ela ergueu o braço contra a luz: sua pele agora
era apenas um traço preenchido por uma matéria já quase totalmente translúcida.
Ela não se importava com aquilo, ou pelo menos fingia não
se importar. “Estou desaparecendo” – pensou – “e isto não me causa nenhum
espanto”. A face exibia um semblante frouxo, nenhum músculo sequer tencionado,
reflexo de seu pensamento atordoado.
Qual poderoso narcótico ofereceram-lhe sob a falsa
alegação de ser a remissão de seus erros? Como se somente ela errasse, como se
os seus pecados fossem piores do que os de todo o resto da humanidade. Talvez
ela não acreditasse nisto, não fosse as inúmeras vozes a repetir sempre mais
alto que ela não era nada.
Antigamente, quando ela era pequenina e usava aquele
vestido estampado de rosas azuis com o cabelo solto a seguir o movimento do
vento, ela se perguntava se existiam realmente rosas azuis em algum lugar do
mundo. Gostava de pensar que não, que ela era a única a portar – mesmo que na
forma de um desenho – aquelas peculiares flores: era o indício de que era
única. Mais tarde, quando ganhou de presente do pai um caleidoscópio ficou
maravilhada com o fato de que o mundo poderia ser colorido de uma forma tão
intensa. Sempre que colocava seus pequenos olhos no orifício mágico os prédios,
as ruas, as pessoas, tudo – dentro de sua cabeça – parecia maravilhosamente
transformado num mar de formas e cores inimagináveis na realidade. Aquele era o
seu jeito particular e único de ver o
mundo. Quando ela lembrou daquele distante passado já havia desaparecido quase
por completo a medida que a folha em seu branco inocente era invadido por um
mar de preto que preenchia suas linhas horizontais com aquelas palavras
nulificantes. Deu um sorriso cínico e cansado que quase não apareceu num rosto
que já não identificava como existindo de fato, apenas uma parte insistia em
manter a cor bronzeada que carregava consigo. O sorriso já era a anuência com o
fato inevitável que em pouco tempo deixaria de existir. Tentou se desesperar
uma última vez para ver se ao menos conseguia forças para lutar contra seu
destino, mas até sua vontade ia aos poucos adquirindo um tom translúcido qual
seu corpo: era sua alma que compactuava com a carne para que o desaparecimento
fosse completo. Quantas linhas mais seriam necessárias para que tudo tivesse
fim?
Não soube precisar quando, mas de deu conta de que o
lugar ao seu redor ia também desaparecendo. O colchão todo marcado por sulcos –
fruto do demorado tempo que ela permanecia deitada nele – tornara-se
inconsistente em suas cores já tão gastas e desbotadas. A escrivaninha antiga
de madeira escura só era possível de se distinguir agora por causa apenas de um
encardido que era antes um vigoroso marrom. Assim também a cadeira, o
guarda-roupa e o restante da parca mobília do lugar que já não existiam. As
paredes não passavam de rabiscos imprecisos lutando desesperadamente para não
deixar o outro lado à mostra. Ela achava aquilo quase sem interesse, como se
fosse algo natural. Deteve seus olhos no fenômeno apenas o necessário para
aceitar que seria melhor assim: era o mais sensato que tudo relacionado a ela
desaparecesse também. Cogitava se teriam lembranças dela. Não! Nem as memórias
a seu respeito seria poupadas. Se ela fosse realmente apagada do mundo, então
tudo relacionado a si deveria perecer.
Apressou a escrever mais rápido. Sabia agora com certeza
que se terminasse a última linha do afolha já quase totalmente preenchida
acabaria com o martírio do mundo de suportar seu peso inútil e sem sentido.
Faltava quase nada, mais alguns “Eu não sou nada” e estaria acabado. Ela já
podia sentir um alívio com isso, por não suportar o fardo da responsabilidade
de ser alguma coisa: era doloroso demais. Ou será que aquela dor era fruto da
inveja e do ódio daqueles que queriam afirmar sua existência mesquinha ás
custas da dos outros? Não dava mais para responder, já havia chegado na última
linha.
Epílogo:
Quando terminou de
escrever a última palavra já não existia quase nada do que um dia fora sua
vida. Já não sentia o vento que passava livremente pelo lugar que outrora fora
uma casa. Nem os sons dos carros a cruzar violentamente a rua conseguiram
chegar mais aos seus ouvidos. Soprou uma última vez o ar e ele não obedeceu.
Seus lábios antes escarlates inclinaram-se levemente num esboço de um sorriso.
Uma lágrima tentou rolar de sua face mas parou quando ela proferiu suas últimas
palavras, que saíram apenas como um movimento dos músculos do rosto, pois já
não havia uma garganta para fazer vibrar o som. Contudo, dava para ler, caso
alguém ali soubesse ler lábios, o que ela tentava marcar em sua lápide mental
como epitáfio: “Eu fui alguém”. No momento seguinte desapareceu e ninguém mais
ficou sabendo quem ela era
Na
alvorada do dia seguinte, quando o preguiçoso dourado de um sol que demorava a
nascer preenchia o telhado das casas com sua cor, um homem fazia a rotineira
caminhada matinal quando foi surpreendido por um pedaço de papel que aderira ao
seu corpo por conta de uma brisa que forçava-o contra si. Ia atirá-lo fora
quando a curiosidade o invadiu e ele bateu o olho no que estava ali escrito.
Repetidas vezes, de um canto ao outro do papel, uma frase sem sentido marcava
tristemente a folha com uma letra corrida e despreocupada, quase ininteligível.
“Eu não sou nada” era o que estava escrito. Subitamente surgiu na mente do
homem a figura de uma mulher a dançar por um canteiro decorado com muitas
roseiras com flores azuis. Acima de sua cabeça descia uma luz multicolorida que
ao bater no chão formava nele inúmeras e indecifráveis formas que ficavam
girando e passando por todo o canteiro. Os pés da moça eram tão leves que pareciam
flutuar acima da grama verde. Seu sorriso emitiu uma alegria e uma
tranquilidade tão grandes que quem a contemplasse naquele momento pensaria que
para ela nada mais faltava na vida.
A imagem proporcionava ao homem
uma voraz vontade de chorar, só ultrapassada pela felicidade que ele sentia ao
se lembrar do semblante da moça despreocupadamente a sorrir, um semblante que
ele não conhecia mas que inexplicavelmente lhe proporcionava um certo
saudosismo. Decidiu então que guardaria aquele insólito objeto, dobrou-o e o
colocou numa das repartições de sua carteira. Daquele dia em diante, a cena da
mulher a dançar sorridente cercada de rosas azuis nunca mais abandonou os
pensamentos do homem.
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