Eu odeio
o dia cinco de cada mês, e por uma razão bem simples: é o dia em que preciso ir
ao supermercado fazer a compra mensal. Não que eu não goste de tal tarefa. Pelo
contrário. Isto me livra de pagar um imprestável qualquer para realizar o
serviço – desperdício de dinheiro na minha opinião. Além disso, a inútil da
minha empregada está muito aquém de conhecer meu gosto refinado. É algo que
somente eu estou apto a fazer, por esta razão vou pessoalmente naquele lugar.
Dentre
todas as coisas da vida, aquelas pelas quais sinto mais asco são as sem
sentido. Não há nada mais patético do que aquilo que não possui um pingo de
razão dentro de si para existir. É por isto que odeio o dia cinco, porque é
neste dia que eu tenho que encarar o idiota do açougueiro. Ele é sem sombra de
dúvidas o ideal encarnado da desrazão. Uma anomalia, uma aberração que não
deveria ter nascido, mas que infelizmente me afronta todos os meses da minha
vida com aquele sorriso branco, aquela voz firme e alegre, a face corada, os
olhos brilhantes a encarar a íris dos clientes, as palavras educadas e a
disposição constante para o trabalho. Isto porque simplesmente não há razão
para tal serviçal ostentar toda aquela felicidade boba em seu rosto.
Entendam:
não sou contra a felicidade de ninguém. O que não suporto, como já disse, é
haver felicidade sem razão, como era o caso do açougueiro. Até hoje eu não
posso entender como é que os músculos daquele rosto conseguem se articular para
sorrir, é simplesmente incompreensível. Uma vida medíocre adicionada de várias
tragédias não deve ter como resultado um estado de alma tão elevado e, contudo,
é o que acontece. Digo isto pelo fato de que conheço a vida deste homem e nada
nela é sintoma de felicidade e sim de piedade. Aliás, se há algum sentimento
que deveria resumir a estadia do açougueiro na terra, este sentimento
certamente é a piedade. Senão, que melhor palavra para definir uma alma
castigada pelas intempéries do mundo, que passou fome e sede quando criança, que
sobreviveu à chegada das doenças que por pouco não tomam sua vida devido à
negligência da família. Que teve um pai alcoólatra e uma mãe drogada e foi
obrigado a morar com parentes que nunca o reconheceram totalmente. Que sofreu
discriminação pela cor que o destino lhe vestiu e depois mais discriminação
pela situação social que sempre foi desfavorável. E depois, quando a infância e
suas máculas o deixaram em paz com seus pelos crescidos e a esperança de uma
nova vida o aguardava, ele viu nascer, crescer e se expandir o amor na forma de
uma mulher. Só que para ele as coisas nunca foram simples e ele presenciou
também o ocaso deste sentimento na forma de tragédia e morte.
Não. É
inadmissível que uma pessoa assim seja feliz e meu estômago ferve só de lembrar
da solicitude com a qual ele me atende. Tamanho atrevimento é agressivo e
asqueroso porque me sinto mal em compartilhar um sentimento com uma pessoa
desse tipo. Eu sim, mereço ser feliz! Pela minha condição financeira,
intelectual e social. A felicidade em mim transborda como um rio cheio de
afluentes, é caudaloso. Sou digno do estandarte da alegria autêntica. Aquele
aborto que o açougueiro finge ostentar – aquilo é a farsa mais vil que já se
inventou no universo. É impossível que alguém com o seu histórico de vida seja
feliz. Aquele jeito cordial não me engana: é um meio para disfarçar toda a
tristeza que carrega dentro de si. Deve ser isso, afinal que mais seria?
Felicidade? Não me façam rir! Nunca! O “obrigado” que ele diz para todos os
fregueses da fila deve estar carregado de um rancor imenso, uma raiva acumulada
pelos anos que nunca foram gentis com ele. Ah sim! Isto explicaria tudo! Um
homem triste, colérico e ressentido que sabe disfarçar sua frustração com a
máscara da sua felicidade besta. Não estarei enganado. Repito: deve ser isso
certamente. Ele não merece a felicidade. Não há como eu estar enganado a
respeito disso.
Agora
entendem minha queixa? Compreendem a causa de minha raiva? Aquele engodo a
que chamam de açougueiro nada mais é do que isto: uma triste contradição que
não sabe de sua condição neste mundo e insiste em realizar um papel que não lhe
cabe. É por isto, como disse, que o dia cinco de cada mês me é tão desgastante.
Que ódio.
Gostei. bem articulado, longe do lugar comum que este tipo de texto nos leva. Não foi enfadonho e principalmente, pareceu que vc estava contando pra um migo. Legal mesmo.
ResponderExcluirMuito interessante a maneira como vc coloca oculto os verdadeiros valores. Gostei!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirlendo esse aqui como tantos ja lidos imaginei uma (a principio) mulher nervosa e cheias de suposições e comparações. Aproveitei a imaginação e pensei nos gestos, vestimentas e formas de olhar, posso lhe garantir se ela ficou parecida com um homem imitando uma mulher. kkkkk. ok, mas deixando essa questão de lado até essa mesma pessoa refletiu sobre sua condição e status no mundo e se pôs por um instante no lugar do outro e viu que muitos de nós não compreendemos nossos sentimentos e a razão de nossas atitudes e emoções. Ser desconhecido de si mesmo.
ResponderExcluirParabens. Soube articular sobre uma máscara que carregamos até perante aquele que volta o olhar no espelho.