O Homem do Banco

A história daquele homem é mais ou menos assim.
Todos os dias de sua vida, desde que criou em si uma consciência de que era um ser autônomo e dotado de faculdades que o determinavam como um homem ele sentava assiduamente no banco da praça ao décimo segundo badalo do sino da igreja. Neste horário, podia ver os inúmeros pombos que sobrevoavam a sua cabeça à procura de comida. Podia ver os raios do sol em sua total vitalidade, irradiando calor e claridade para os quatro cantos daquele reduto arborizado da cidade cinza. Sentava no mesmo banco, todos os dias, e só se levantava quando o sol há muito se havia posto em seu repouso diário. E era até estranho como todos evitavam tomar o seu lugar. Ninguém ousava sequer permanecer no assento quanto avistava o homem caminhando a passos cadenciados ao encontro de seu fiel companheiro de toda uma vida. Virou praticamente uma atração. Tornou-se conhecido por ser “o homem do banco”. Ele não ligava. Acredito que nem tivesse consciência de sua alcunha.
A cidade toda era espectadora do evento que em muitos e muitos anos nunca teve uma pausa. Muitos se perguntavam se ele não tinha mais nada de útil para fazer em sua vida. Muitos se atreviam a rezar teorias sobre sua atitude. Muitos achavam que o homem era louco. E tantos outros mantinham uma curiosidade mórbida sobre aquele fenômeno tão peculiar. Mas o certo é que todos, de uma certa forma, achavam engraçado a vida patética que vivia o homem do banco. E curiosamente nenhum cidadão se atreveu a perguntar para o homem qual o real motivo de tamanha determinação. Mesmo quando o relógio da igreja parou de funcionar por duas semanas, lá estava ele. Mirava para o ponteiro dos minutos e quando o mesmo se encontrava com o das horas, contava até doze em voz alta e depois disso se sentava.
Os anos foram passando, mas nem mesmo a idade avançada parou o homem de fazer seu ritual. Enquanto todos achavam naquilo uma forma de passar o tempo, de divertimento às custas da vida alheia, eu me sentia triste de ver aquela cena todos os dias, mas nunca soube ao certo qual o motivo deste sentimento. Talvez fosse algum tipo de piedade. Na época eu não soube precisar muito bem. Acontece que um belo dia o homem não compareceu. Foi o assunto do dia e cogitou-se que o homem havia morrido ou pelo menos adoecido. Foram verificar: acertaram os que apostaram (sim, muitos apostaram realmente) na primeira opção. Lembro-me bem de que neste dia eu estava na praça precisamente no momento em que um garoto de pouco mais de dez anos corria ao encontro dos curiosos dizendo: “o homem do banco morreu! O homem do banco morreu!”.
Acho que ninguém na cidade soube precisar o que sentiu pelo falecimento do homem. Mas certamente nos dias que se seguiram ao seu enterro uma onda de saudosismo tomou conta de todos. Era como se faltasse uma parte da praça, e realmente faltava. O homem do banco nunca mais apareceria. Muitos anos depois da sua morte um vereador teve a ideia de homenageá-lo e a prefeitura mandou fazer uma estátua em tamanho real do pobre homem e colocou onde o ele sentava sem falta no fim da décima segunda badalada do relógio da igreja.
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Eu praticamente cresci vendo aquele homem. Dos dez anos até os vinte ele foi presença no meu cotidiano. Cresci escutando zombarias a seu respeito. Cresci vendo sua feição envelhecer junto aos pombos que o acompanhavam. Cresci sentindo aquela tristeza inexplicável junto ao meu coração. Quando completei a faculdade de jornalismo o meu primeiro trabalho foi no jornal local da cidade. Meu chefe queria uma matéria para o caderno especial que era editado uma vez por mês e que tratava sempre de algum cidadão do município. Automaticamente me veio em mente o homem do banco. Seria o meu primeiro trabalho de fôlego dentro do jornal e eu queria mostrar serviço. Investiguei ao máximo a história daquele curioso cidadão e acabei um dia cruzando com o filho do falecido velho que aceitou me receber em sua casa. Conversamos a tarde toda sobre Ramiro – foi a primeira vez que soube o nome do homem do banco. Soube que ele era uma pessoa triste e de poucas palavras. Muito carinhoso com os dois filhos, mas muito reservado. A esposa havia morrido pouco depois que seu segundo rebento nasceu e ele cuidou sozinho da educação de ambos. Antes de se tornar o homem do banco era professor dedicado na cidade antiga onde morava. Um certo dia, disse aos seus filhos que fizessem as malas, pois iriam para outra cidade. Eles se mudaram para cá e no dia seguinte à mudança Ramiro adotou a postura que o acompanhou até o fim de seus dias. Seu filho não sabia explicar a atitude do pai. Quando o questionava ele ficava sério e mudava de assunto. Os filhos cresceram, ficaram independentes e o velho Ramiro ficou só em sua casa. Os rapazes sempre o visitavam, porém mais e mais ele dava sinais de um isolamento espontâneo do mundo. Antes de ir embora o rapaz me deu uma carta que o velho Ramiro havia escrito.
“Pode levar” – disse o filho do homem do banco – “eu sinceramente não entendi muita coisa que ele quis dizer, mas acho que vai ser útil para você.”
Eu fiquei com a carta e fui para casa ao cair da tarde, apreensivo com o que eu leria naquelas folhas amarelas que se encontravam em minhas mãos. Não acreditava que ninguém se dispusesse a desvendar o segredo do velho homem. Talvez os habitantes tivessem encontrado um novo passatempo para se deleitar e tivessem esquecido o pobre Ramiro para sempre e colocado em suas mentes que a estátua de bronze sempre esteve ali, que carne alguma ocupara o lugar onde ela se encontrava. Muito provavelmente se deram por convencidos de que todo o assunto relacionado ao homem do banco fosse mesmo direcionado à estátua. E assim a cidade seguia seus dias.
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Quando ceguei em casa eu mal conseguia controlar minha excitação, mas abri com cuidado o envelope e mergulhei nas linhas daquela que para mim era um tipo de carta confessional. O velho Ramiro muito provavelmente tinha consciência da curiosidade que sua atitude criara e talvez ela fosse uma forma de esclarecer um pouco suas razões. O conteúdo era sucintamente este:

Todos os dias de minha vida tiveram uma razão. Não tenho o tino reduzido ou sequer envelhecido pelo tempo e sei que muitos podem pensar que estou louco. Contudo, não estou. Passei muitos momentos de minha vida magoando e sendo magoado por sentimentos mesquinhos e não-verdadeiros. Quão imensa é minha dor por eles eu não saberia mensurar. As pessoas são pragmáticas em demasia e se esquecem de seus verdadeiros objetivos no decorrer de suas vidas. Elas se esquecem de tanta coisa! Creio que sou velho o suficiente para entender o quanto somos imbecis em apagar de nossas memórias todas os sentimentos que nos auxiliam a ser pessoas melhores. E tudo por quê? Tudo porque perdemos nossa sensibilidade no decorrer de nossa caminhada. Tudo porque ficamos cegos, surdos e insensíveis pelos reveses que nos atormentam. Depois que experimentamos nossas primeiras dores e frustrações ficamos de luto até o fim de nossos dias, lamentando que todas as coisas que nos prometeram no florescer da juventude eram mentiras. Mas isto é a maior das mentiras! Nós é que colocamos uma máscara nessas coisas e as tratamos com asco e desconfiança. Não há O amor, A amizade, ou qualquer outro ideal que a humanidade sempre cultiva. Não existem enquanto ideais. Mas por acreditarmos nisso, esquecemos que eles podem existir enquanto fatos: imperfeitos, incompletos, perecíveis. A derrocada de nossas rebeliões da adolescência é também a ascensão de nossa amargura.
Eu vivi todos os dias da minha vida refletindo sobre a razão de tudo e de todos, e não encontrei respostas em minha procura. Não que isto seja algo ruim. De forma alguma. Mas me pergunto se algum dia eu as terei encontrado. As dores da idade vão surgindo e com elas também as dores do espírito vão se alargando em meu coração. Sempre fui um ser passivo, daqueles que esperam por algo. Existem aqueles que agem, que arrancam com suas próprias mãos o destino incrustado dentro da terra. Eu, ao contrário, espero ele brotar do chão. Mas ele nunca surge. Meus dias sentado naquele banco são uma metáfora para minha condição e talvez ninguém além de mim saiba ao certo o que isto significa. Quando tomei a decisão de esperar, disse para mim mesmo que esperaria até o fim. Seria a minha última dor...

Quando terminei de ler aquele manuscrito confuso e ao mesmo tempo triste meu rosto estava molhado com minhas lágrimas e eu não conseguia conter o choro que se propagou por longos minutos. Adormeci naquele dia tendo em minha mente a visão daquele homem. Talvez eu agora entendesse o significado de algumas de suas rugas, ou da visão que nunca encontrava seu foco. Eu pensei que fosse achar afinal uma explicação para os atos de Ramiro, algo que eu poderia esfregar na cara daqueles que sempre riram dele. Mas fiquei muito frustrado com o que li. É provável que o velho tenha escrito aquilo apenas para ele e de certa forma eu me reconfortei na ideia de que ele era lúcido o bastante para guardar consigo as razões que o levaram a fazer aquilo tantas e tantas vezes.
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Quando meu chefe leu a matéria ficou fulo comigo e disse que aquilo não era coisa para se publicar, que o homem do banco não dava audiência em lugar nenhum e que era melhor eu procurar alguém mais influente para fazer a matéria, talvez puxar o saco de algum político influente, para o bem do futuro do jornal. Naquele dia eu saí do trabalho sem rumo, maldizendo meu chefe com todos os nomes possíveis que o fizessem mais parecido com algum ser das trevas do que com um humano propriamente. Quando me dei conta, estava na praça. Na tão famosa praça do homem do banco. Eu nunca havia sentado naquele banco pois achava que era um tipo de sacrilégio. Mas naquele momento eu senti uma sensação de aperto que me encaminhou para o famigerado banco. Acabei sentando sem muita vontade de pensar em nada. Não resisti e chorei quando escutei a sexta badalada do relógio da igreja. Seria a hora em que o velho Ramiro se encaminharia para casa. Era uma tarde vermelha e fria, com poucas pessoas corajosas a ponto de ficarem à mercê do inóspito ambiente que se formava ali. Subitamente me veio na lembrança uma frase da carta enigmática: “Sempre fui um ser passivo, daqueles que esperam por algo.” Questionava o que aquilo significava. Esperava pelo quê, precisamente? Olhei ao redor: para os pombos que já não haviam mais ali, para as flores apagadas dos canteiros, para os transeuntes alienados à minha presença. Minha garganta se apertava mais e mais à medida que tudo ao redor me forçava para a mais solitária e escura solidão. Por um momento senti-me como o antigo dono daquele banco e compreendi o que ele esperava: alguém, algum indício de que ele ainda estava vivo. Esperava que alguma boa alma o acolhesse nos trilhos de seus destino e desse um lugar em seu coração. Talvez um amigo, ou quem sabe um inimigo. Um amor para confortar as tardes frias que lhe cortavam o rosto, ou para sorrir com ele aquecido pelo sol do meio dia. Eu nunca soube ao certo quais foram as dores pelas quais aquele homem passou, nem os verdadeiros motivos que ditaram suas ações estranhas. Mas soube de sua solidão no mesmo instante em que coloquei meu corpo no banco onde ele havia vivido boa parte de sua existência. Não digo que aprovo sua conduta. Esperar que alguém entenda suas dores e suas alegrias é uma tarefa suicida. Ninguém sai por aí perguntando para um desconhecido se ele precisa de um amigo, por exemplo. A passividade do velho Ramiro era esta: a espera pelo amor, pela amizade, que ele considerava algo real, em sua imperfeição e incompletude. E o triste da história é que ele esperou em vão. Algo trágico, já que ele sabia da existência daqueles sentimentos no plano em que vivia. Pergunto-me qual a causa de sua recusa em criar forças e sair atrás de seu próprio destino. Mas esta é uma indagação que me foge o alcance. Por isso não o trato como um covarde, apensar de muitas vezes pensar que ele agiu como um. Mas a dor de imaginar uma espera sem fim, uma espera vazia me causa lágrimas até hoje e o personagem do homem do banco, protagonizado pelo velho Ramiro ainda faz meu coração pensar nas difíceis e muitas vezes conturbadas relações humanas. Em como em tantas ocasiões ficamos sentados a esperar que as coisas sejam diferentes, que as pessoas sejam diferentes. Preferimos a quietude do repouso ao agonístico desconhecido da ação. Preferimos pensar que as coisas mudam por si mesmas. Preferimos imaginar que as coisas não podem ser piores do que já estão e nos resignamos a concordar que vivemos a pior das existências. Preferimos maldizer as chances que passam por nossos olhos enquanto estamos com eles cerrados. Preferimos esperar pelas palavras dos outros do que dizer aquelas que estão trancadas em nossos corações. Preferimos pensar que a solidão é um fantasma eterno que nunca nos abandona do que alçar os arriscados vôos aos corações dos outros. Preferimos ficar imóveis como criaturas do banco, sentadas no frio da existência que não tem uma razão, pelo menos uma razão feliz.

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