Seria ele
feliz? Era o que eu sempre me perguntava todas as vezes que o via cruzando a
rua da minha casa.
Eu não era
feliz. Disso eu tinha certeza, e por isso mesmo me pegava em várias ocasiões
imerso nesta inveja tola de quem com o olhar amaldiçoa o que não possui. Talvez
em consequência deste sentimento é que me mantinha tão ocupado na tarefa de
comparar minha infelicidade com a dos outros. Criei escalas de felicidade e de
tristeza baseadas nas atitudes e posturas das pessoas – nunca no que diziam.
Aliás, coisa que aprendi é que em vários casos a felicidade de alguém é
inversamente proporcional à intensidade com que ela diz: “sou tão feliz!”. E
com esta arte de mensurar um sentimento eu seguia minha vida miserável de rancoroso.
Voltando à
minha pergunta inicial – que sempre foi a pergunta por excelência da minha vida
– eu não conseguia deixar de pensar o que significava qualquer coisa que fosse
para aquela criatura.
Ele não
ligava para ninguém e aparentemente não se importava com o que pudessem pensar
de sua aparência ou de seu modo de vida. Mantinha algumas obrigações que sempre
realizava ao longo do dia, mas era somente isto. Na maioria do tempo se
aventurava a fazer o que passasse pela sua cabeça. De manhã acordava fazendo
barulho; eu sabia disso porque morava perto de onde ele ficava. Imaginava
sempre que muitas pessoas não gostavam disso, mas ele nunca sequer fez menção
de mudar seu jeito por causa dos outros. Sempre manteve a mesma postura apesar
das ameaças. Mantinha um andar apressado e eu raramente o vi em passos de
pensador. Como não trabalhava, vivia de favores e quem mais lhe ajudava era um
velho que mantinha uma modesta venda perto de casa. Usava sempre o mesmo
método: aparecia na porta do estabelecimento calado. Não mencionava nem sua
chegada, também não fazia cara de piedade. Seu semblante permanecia sereno,
calmo – algo raro para um estômago acostumado a tão pouco. Conseguia o seu
punhado assim: inerte, e enquanto comia com uma velocidade felina e
desajeitadamente desesperada seus olhos castanhos quase vítreos não davam
importância aos outros olhos multicoloridos que o observavam com aquele ar de
asco que é habitual sentir aqueles que são pregadores dos bons costumes e da
boa etiqueta – ficava a imaginar eu aqui com meus botões se eles sabiam que a
única regra moral que a fome conhece é a da saciedade.
Ninguém
destratava aquela alma, mas também ninguém o tratava como uma criatura
existente e talvez fosse este fato que mais me incomodava quando pensava
naquela minha velha pergunta: “seria ele feliz?”. Apenas um dia tive uma
resposta satisfatória. Era um dia de chuva, dia cinzento de uma segunda-feira
mal-humorada. Pela janela da minha casa eu podia observá-lo atentamente:
caminhava na mesma cadência apressada de sempre, olhando para o chão – o que
ele procurava naquele cimento eu nunca soube ao certo. Enquanto isso os pingos
frios alcançavam seu corpo encharcado, mas ele mantinha aquela mesma feição
inexpressiva que apresentava sempre. Não me contive, tinha de saber e quando
dei por mim já estava na rua, indo ao encontro da esfinge que insistia em negar
a resposta à minha cruel dúvida. Estava a três passos de encarar o incômodo
vizinho quando ele parou e fez questão de me lançar um olhar tão gélido quando
o ar que fatigava nosso corpo. Detive-me por impulso e meu ventre doeu e meu
coração disparou – não sabia exatamente bem o motivo. Era um momento
constrangedor aquele para mim certamente e ele continuava ali a me encarar sem
nada dizer, mas já me questionando um silente: “que fiz eu de errado agora?”.
Não
consegui sequer mover meus lábios para responder ao meu inquisidor,
simplesmente não dava. Aquela feição amendoada me dizia coisas, os arcos caídos
que delineavam dois olhos cansados, congelados por uma espécie de desligamento
do mundo – talvez fosse o desejo de se distanciar da dor, não sei. Eram duas
janelas que apontavam para lugar nenhum: simplesmente mantinham-se fechadas,
como que escondendo do mundo a alma daquela criatura. Mesmo assim eu conseguia
enxergar algo que me transtornou de tal maneira que fiquei feliz naquele
momento por ser uma pessoa triste: o que ninguém conseguiu interpretar naquele
rosto, o sussurro que ninguém escutou daqueles olhos que gritavam para serem
decifrados era a consternadora constatação de que ele não era feliz, nem
tampouco triste – era indiferente.
* * *
Se há uma
coisa que aprendi com a tristeza é que ela pode ser em muitas ocasiões mais
frutífera do que a felicidade. Nisto sou experiente, e talvez o tempo tenha
colaborado para que este velho não coloque tantas esperanças num sentimento que
não chegou a sentir muitas vezes. A tristeza sempre foi minha companheira e
nunca me abandonou quando precisei dela. Contudo, a indiferença, esta ausência
total de afetos bons ou ruins, a anulação consentida do ser perante o mundo,
isto é outra coisa. Eu sempre achei que as coisas devem necessariamente afetar
as pessoas, caso contrário existe algo de muito errado.
Foi curioso
como aconteceu. Justamente no dia daquela chuva, quando finalmente entendi o
que se passava com a peculiar criatura é que houve o acidente. Um carro, sem
pretensões homicidas, talvez distraído pelo celular que seu dono atentamente
atendia, esbarrou ligeiramente em seu corpo indiferente à chuva e ao frio... e
à solidão, lançando-o a alguns metros. O carro, claro, cúmplice de seu
condutor, não deu muita importância ao acontecido e prosseguiu viagem como se
nada tivesse ocorrido, uma rápida experiência acerca da sensibilidade humana.
Eu não entendia, em minha compreensão parca do mundo dos homens, como alguém
caído no chão, ferido e gritando poderia se equiparar a nada para alguns. Mas
existem tantas comparações insólitas no reino humano que me preocupei em
socorrer o pobre infeliz a ficar divagando sobre o acidente.
Pode ser
que alguns tenham visto a cena, e que outros tenham escutado os lamentos, mas
somente eu, de todos que tinham os olhos e ouvidos para o acidente, fiz algo.
Uma estranha contradição, já que meu rancor nunca me permitiu ser altruísta.
Talvez fosse a curiosidade de querer perguntar para aquele indivíduo sobre sua
indiferença.
Recolhi seu
corpo ferido do asfalto enquanto observava seu semblante. A agonia da dor havia
passado e ele voltava a manifestar aquela ausência de afeto no rosto. Quando o
socorri ele não me disse nada, nem tampouco eu a ele. Ficamos apenas a nos
olhar, perscrutando paralelamente o espírito um do outro. Existem “almas” que
parecem compreender o clamor implícito de outras com tamanha destreza que chego
a quase duvidar de meu ceticismo sobre a existência dessa substância no
mundo.
O momento
cinza, coberto pela chuva fria e sustentado por aquele palco onde os
expectadores insistiam em cobrir seus rostos foi o instante no qual nossas
almas se comunicaram. Por um momento senti um aperto grande no peito e esbocei
um sorriso – seria felicidade? A criatura pareceu corresponder e abanou sua
cauda pela primeira vez – seria algum tipo de afeto?
Quando
voltei para casa com aquele cachorro nos braços ele mantinha ainda aquele
semblante distante e desconfiado, e eu também carregava a mesma tristeza
costumeira. Apenas uma coisa havia mudado: o fato de que não desejávamos mais
deixar de compartilhar um com o outro aquela cumplicidade esboçada na primeira
troca de olhares. Eu não queria perder aquele sentimento que encontrei dentro
de suas íris e talvez ele não quisesse se afastar de uma companhia que o
fizesse voltar do limbo no qual sempre estava.
Felizmente
com ele não havia acontecido nada grave e eu decidi, contrariando minha índole
rabugenta, que ficaria com ele em casa até que ele recobrasse a saúde
totalmente. Ficamos todavia juntos por mais de dez anos e quando eu me fui,
poucos meses depois de seu óbito, para o outro plano, fui enterrado, segundo
minhas próprias ordens, ao lado dele, que a partir do nosso primeiro encontro
chamei de Eudaimon em homenagem a
tudo o que posteriormente senti ao seu lado. Espero que ele tenha se tornado ao
menos uma essência menos indiferente ao mundo junto a mim. Era o mínimo que eu
poderia ter feito por alguém que me livrou do claustro da eterna tristeza.
Como sempre seus contos me fazem refletir. Uma parte a vida e o momento do autor e o que essas palavras estao tentando demonstrar e a outra em que essas mesmas palavras influenciam en meus pensamentos e futuras ações. Admiro a forma como simples gestos que aos olhos de muitos são inúteis e aos olhos de um pensador virão magnificas obras para nos propor uma leitura agradabilissima. Obg sempre um prazer lê e deliciar com suas escritas.
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