No começo foi um desabafo. Alguns goles transparentes que
dilaceravam sua garganta e entorpeciam suas aflições. Era porque a vida era
dura naquela época e ele não possuía os cabelos brancos o suficiente para não
cair na tentação de uma pseudo-esquiva do mundo. Num piscar de olhos ele
possuía mulher, filhos e toda a bagagem que a vida oferece junto com as
vantagens da gregariedade e ainda assim os desabafos continuaram.
Trabalhava com caminhão. Ele sabia que não precisava mais
daquelas escapulidas temporariamente erradicadoras de sofrimento. Possuía noção
de que conseguia muito bem digladiar com a realidade e sair vitorioso, a
despeito das cicatrizes que ela deixaria em seu corpo – e principalmente em sua
alma. Mas então por que esta anti-vontade que acometia todas as células de seu
ser? Havia sucumbido à escuridão que fermentava em todas as suas veias e
percorria completamente o seu corpo.
Haveria de remover o vício através de uma vontade
inquebrantável. Ele necessitava disso, afinal agora possuía
mulher, filhos e toda a bagagem que a vida oferece junto com as vantagens da
gregariedade. Contudo, toda vez que ele subia na cabine do caminhão, toda vez
que colocava a mão no câmbio para engatar o veículo subia-lhe um desespero
daqueles que não se sabe bem por que vem, mas quando chega, chega onipotente. E
ele mais uma vez sucumbia ao afã de desabafar aquilo que ele não precisava mais
expurgar.
Repetidas vezes pensou em buscar ajuda, se tratar, extirpar
a violência e o engodo que criara para si mesmo, mas quem iria cuidar das
coisas para ele? Quem seria o arrimo em seu lugar? Ninguém... e ele possuía
mulher, filhos e toda a bagagem que a vida oferece junto com as vantagens da
gregariedade. Não, não tinha tempo para isto. Mas então o que fazer? Como lidar
com a prensa do mundo caindo sobre suas costas? Não havia outra alternativa a
não ser segurá-la com toda sua força, afinal os humanos compartilham um destino
parecido com o do titã Atlas, que sustentava todo o peso do mundo em seu dorso. Aparentemente os humanos precisam fazer o mesmo com seus pequenos, mas valiosos
universos. Além do que ele tinha mulher, filhos... e a prensa.
Teria que ser na raça. Ele seguiria em frente apoiado no
amor que sentia por sua família e de vez em quando pararia para desabafar um
pouco. Tudo ficaria bem.
Foi numa dessas paradas que o destino resolveu brincar de
queda de braços com ele e, com toda a força que ele mantém sobre os homens
acabou vencendo o embate e nos destroços do que costumava ser um veículo, uma
vida que lutava para se manter de pé se esvaía inexoravelmente. E o último
mantra que ninguém conseguiu escutar daquele pobre moribundo era algo como:
“Não posso morrer ainda... tenho mulher, filhos...”.
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