Silêncio

Não se importava de ficar horas ali. Aliás, para ele aquilo era um bálsamo, um entorpecente.
Sentado num banco qualquer, numa das incontáveis estações alojadas abaixo do tapete cinza da cidade, o homem observava o fluxo infinito de feições que deslizavam de um lado para o outro, subindo e descendo escadas, entrando e saindo dos trens. Contudo, não era esta dinâmica aparentemente caótica que interessava ao homem observador e entenderemos, ao descer os olhos até algumas linhas abaixo, como seria mais prudente chama-lo de homem auscultador. Isto se faz perceber pelo fato de que para ele o fenômeno do movimento pouco importava, ou importava enquanto condição para outro tipo: o sonoro. Por trás do contato ríspido dos trens com os trilhos, do atrito da borracha dos sapatos dos transeuntes com o solo, do abrir e fechar das portas metálicas, havia o interesse no silêncio produzido por toda aquela algazarra, algo que talvez possa soar contraditório para a maioria, mas não para o homem. Ele era o ouvinte mais atento de todos que compartilhavam do mesmo lugar. Para o homem auscultador, cada som que roçava seu ouvido significava a paz silente que ele tanto procurava. Assim era que as vozes das pessoas em seus telefones portáteis eram como um coro ressonante a reproduzir a inebriante canção do nada. Os diálogos estrondosos, as risadas estridentes, as calorosas discussões, o encostar de mãos, de pernas, dos tecidos mais variados com a pele, os passos apressados a percorrer toda a extensão da plataforma coo cavalos de combate rumando para suas batalhas, as engrenagens a tilintar dentro das roletas, indicando a fuga de algum músico ou a chegada de mais um componente daquela insólita máquina de sons coletivos, os avisos sonoros a repercutir ad infinitum a mesma nota monótona: tudo naquele lugar, para os ouvidos do corpo e da alma do homem que permanecia sentado significava apenas uma e mesma coisa – a imersão absoluta no silêncio gerado por aquela cacofonia moderna. Todos aqueles sons, dos infra aos ultra perpassavam seu corpo, acariciando sob a forma de ondas todo o seu ser e levando-o ao aliviante torpor que ele tanto almejava.
Aquele causticante barulho que a maioria espera desesperadamente cessar era o seu nirvana, seu paraíso ou, se tais palavras forem muito fortes para a ocasião, que seja então a fuga de um outro silêncio, que para o homem era de natureza dolorosa e mortal: o silêncio do homem a sós consigo mesmo.
Para o auscultador, os barulhos serviam como anulação deste tenebroso companheiro inseparável que o assombrava todas as vezes que sua sinfonia se encerrava, a canção que o fazia esquecer os gritos de seu silêncio interior, o paradoxo silente que abafava os clamores de uma voz que berrava aos quatro ventos as verdades que o homem insistia em deixar enterradas no mais profundo abismo de sua alma.
Para ele, esta inversão ontológica tão necessária era o que o mantinha são, apenas a alguns passos de ser consumido pela loucura, a loucura do seu silêncio ensurdecedor e que ele negava veementemente, procurando em todos os ruídos que sus ouvidos alcançassem o silêncio mais almejado por quem quer fugir daquilo que se esconde bem lá no fundo. Aquele homem preferia o barulho de tudo ao seu redor, pois era o que o levava ao vácuo de sua existência, onde som algum poderia alcançá-lo, e quando dizemos “som”, nos referimos ao fruto maduro que somente nasce nas estações mais gélidas de um espírito – aquilo que muitos chamam de consciência de si. Era melhor assim, sabe-se lá os perigos e os sabores que tal fruto possui e em se tratando de sentidos, o homem não queria arriscar. Talvez por isso consumisse tantos doces, quereria ele se desvencilhar do amargo que a vida revela aqueles que a provam? Mas isto já seria outra história, e o tempo e a vez dos sons se extinguiram há muito na mente do pobre homem...

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