O Homem do Banco

A história daquele homem é mais ou menos assim.
Todos os dias de sua vida, desde que criou em si uma consciência de que era um ser autônomo e dotado de faculdades que o determinavam como um homem ele sentava assiduamente no banco da praça ao décimo segundo badalo do sino da igreja. Neste horário, podia ver os inúmeros pombos que sobrevoavam a sua cabeça à procura de comida. Podia ver os raios do sol em sua total vitalidade, irradiando calor e claridade para os quatro cantos daquele reduto arborizado da cidade cinza. Sentava no mesmo banco, todos os dias, e só se levantava quando o sol há muito se havia posto em seu repouso diário. E era até estranho como todos evitavam tomar o seu lugar. Ninguém ousava sequer permanecer no assento quanto avistava o homem caminhando a passos cadenciados ao encontro de seu fiel companheiro de toda uma vida. Virou praticamente uma atração. Tornou-se conhecido por ser “o homem do banco”. Ele não ligava. Acredito que nem tivesse consciência de sua alcunha.
A cidade toda era espectadora do evento que em muitos e muitos anos nunca teve uma pausa. Muitos se perguntavam se ele não tinha mais nada de útil para fazer em sua vida. Muitos se atreviam a rezar teorias sobre sua atitude. Muitos achavam que o homem era louco. E tantos outros mantinham uma curiosidade mórbida sobre aquele fenômeno tão peculiar. Mas o certo é que todos, de uma certa forma, achavam engraçado a vida patética que vivia o homem do banco. E curiosamente nenhum cidadão se atreveu a perguntar para o homem qual o real motivo de tamanha determinação. Mesmo quando o relógio da igreja parou de funcionar por duas semanas, lá estava ele. Mirava para o ponteiro dos minutos e quando o mesmo se encontrava com o das horas, contava até doze em voz alta e depois disso se sentava.
Os anos foram passando, mas nem mesmo a idade avançada parou o homem de fazer seu ritual. Enquanto todos achavam naquilo uma forma de passar o tempo, de divertimento às custas da vida alheia, eu me sentia triste de ver aquela cena todos os dias, mas nunca soube ao certo qual o motivo deste sentimento. Talvez fosse algum tipo de piedade. Na época eu não soube precisar muito bem. Acontece que um belo dia o homem não compareceu. Foi o assunto do dia e cogitou-se que o homem havia morrido ou pelo menos adoecido. Foram verificar: acertaram os que apostaram (sim, muitos apostaram realmente) na primeira opção. Lembro-me bem de que neste dia eu estava na praça precisamente no momento em que um garoto de pouco mais de dez anos corria ao encontro dos curiosos dizendo: “o homem do banco morreu! O homem do banco morreu!”.
Acho que ninguém na cidade soube precisar o que sentiu pelo falecimento do homem. Mas certamente nos dias que se seguiram ao seu enterro uma onda de saudosismo tomou conta de todos. Era como se faltasse uma parte da praça, e realmente faltava. O homem do banco nunca mais apareceria. Muitos anos depois da sua morte um vereador teve a ideia de homenageá-lo e a prefeitura mandou fazer uma estátua em tamanho real do pobre homem e colocou onde o ele sentava sem falta no fim da décima segunda badalada do relógio da igreja.
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Eu praticamente cresci vendo aquele homem. Dos dez anos até os vinte ele foi presença no meu cotidiano. Cresci escutando zombarias a seu respeito. Cresci vendo sua feição envelhecer junto aos pombos que o acompanhavam. Cresci sentindo aquela tristeza inexplicável junto ao meu coração. Quando completei a faculdade de jornalismo o meu primeiro trabalho foi no jornal local da cidade. Meu chefe queria uma matéria para o caderno especial que era editado uma vez por mês e que tratava sempre de algum cidadão do município. Automaticamente me veio em mente o homem do banco. Seria o meu primeiro trabalho de fôlego dentro do jornal e eu queria mostrar serviço. Investiguei ao máximo a história daquele curioso cidadão e acabei um dia cruzando com o filho do falecido velho que aceitou me receber em sua casa. Conversamos a tarde toda sobre Ramiro – foi a primeira vez que soube o nome do homem do banco. Soube que ele era uma pessoa triste e de poucas palavras. Muito carinhoso com os dois filhos, mas muito reservado. A esposa havia morrido pouco depois que seu segundo rebento nasceu e ele cuidou sozinho da educação de ambos. Antes de se tornar o homem do banco era professor dedicado na cidade antiga onde morava. Um certo dia, disse aos seus filhos que fizessem as malas, pois iriam para outra cidade. Eles se mudaram para cá e no dia seguinte à mudança Ramiro adotou a postura que o acompanhou até o fim de seus dias. Seu filho não sabia explicar a atitude do pai. Quando o questionava ele ficava sério e mudava de assunto. Os filhos cresceram, ficaram independentes e o velho Ramiro ficou só em sua casa. Os rapazes sempre o visitavam, porém mais e mais ele dava sinais de um isolamento espontâneo do mundo. Antes de ir embora o rapaz me deu uma carta que o velho Ramiro havia escrito.
“Pode levar” – disse o filho do homem do banco – “eu sinceramente não entendi muita coisa que ele quis dizer, mas acho que vai ser útil para você.”
Eu fiquei com a carta e fui para casa ao cair da tarde, apreensivo com o que eu leria naquelas folhas amarelas que se encontravam em minhas mãos. Não acreditava que ninguém se dispusesse a desvendar o segredo do velho homem. Talvez os habitantes tivessem encontrado um novo passatempo para se deleitar e tivessem esquecido o pobre Ramiro para sempre e colocado em suas mentes que a estátua de bronze sempre esteve ali, que carne alguma ocupara o lugar onde ela se encontrava. Muito provavelmente se deram por convencidos de que todo o assunto relacionado ao homem do banco fosse mesmo direcionado à estátua. E assim a cidade seguia seus dias.
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Quando ceguei em casa eu mal conseguia controlar minha excitação, mas abri com cuidado o envelope e mergulhei nas linhas daquela que para mim era um tipo de carta confessional. O velho Ramiro muito provavelmente tinha consciência da curiosidade que sua atitude criara e talvez ela fosse uma forma de esclarecer um pouco suas razões. O conteúdo era sucintamente este:

Todos os dias de minha vida tiveram uma razão. Não tenho o tino reduzido ou sequer envelhecido pelo tempo e sei que muitos podem pensar que estou louco. Contudo, não estou. Passei muitos momentos de minha vida magoando e sendo magoado por sentimentos mesquinhos e não-verdadeiros. Quão imensa é minha dor por eles eu não saberia mensurar. As pessoas são pragmáticas em demasia e se esquecem de seus verdadeiros objetivos no decorrer de suas vidas. Elas se esquecem de tanta coisa! Creio que sou velho o suficiente para entender o quanto somos imbecis em apagar de nossas memórias todas os sentimentos que nos auxiliam a ser pessoas melhores. E tudo por quê? Tudo porque perdemos nossa sensibilidade no decorrer de nossa caminhada. Tudo porque ficamos cegos, surdos e insensíveis pelos reveses que nos atormentam. Depois que experimentamos nossas primeiras dores e frustrações ficamos de luto até o fim de nossos dias, lamentando que todas as coisas que nos prometeram no florescer da juventude eram mentiras. Mas isto é a maior das mentiras! Nós é que colocamos uma máscara nessas coisas e as tratamos com asco e desconfiança. Não há O amor, A amizade, ou qualquer outro ideal que a humanidade sempre cultiva. Não existem enquanto ideais. Mas por acreditarmos nisso, esquecemos que eles podem existir enquanto fatos: imperfeitos, incompletos, perecíveis. A derrocada de nossas rebeliões da adolescência é também a ascensão de nossa amargura.
Eu vivi todos os dias da minha vida refletindo sobre a razão de tudo e de todos, e não encontrei respostas em minha procura. Não que isto seja algo ruim. De forma alguma. Mas me pergunto se algum dia eu as terei encontrado. As dores da idade vão surgindo e com elas também as dores do espírito vão se alargando em meu coração. Sempre fui um ser passivo, daqueles que esperam por algo. Existem aqueles que agem, que arrancam com suas próprias mãos o destino incrustado dentro da terra. Eu, ao contrário, espero ele brotar do chão. Mas ele nunca surge. Meus dias sentado naquele banco são uma metáfora para minha condição e talvez ninguém além de mim saiba ao certo o que isto significa. Quando tomei a decisão de esperar, disse para mim mesmo que esperaria até o fim. Seria a minha última dor...

Quando terminei de ler aquele manuscrito confuso e ao mesmo tempo triste meu rosto estava molhado com minhas lágrimas e eu não conseguia conter o choro que se propagou por longos minutos. Adormeci naquele dia tendo em minha mente a visão daquele homem. Talvez eu agora entendesse o significado de algumas de suas rugas, ou da visão que nunca encontrava seu foco. Eu pensei que fosse achar afinal uma explicação para os atos de Ramiro, algo que eu poderia esfregar na cara daqueles que sempre riram dele. Mas fiquei muito frustrado com o que li. É provável que o velho tenha escrito aquilo apenas para ele e de certa forma eu me reconfortei na ideia de que ele era lúcido o bastante para guardar consigo as razões que o levaram a fazer aquilo tantas e tantas vezes.
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Quando meu chefe leu a matéria ficou fulo comigo e disse que aquilo não era coisa para se publicar, que o homem do banco não dava audiência em lugar nenhum e que era melhor eu procurar alguém mais influente para fazer a matéria, talvez puxar o saco de algum político influente, para o bem do futuro do jornal. Naquele dia eu saí do trabalho sem rumo, maldizendo meu chefe com todos os nomes possíveis que o fizessem mais parecido com algum ser das trevas do que com um humano propriamente. Quando me dei conta, estava na praça. Na tão famosa praça do homem do banco. Eu nunca havia sentado naquele banco pois achava que era um tipo de sacrilégio. Mas naquele momento eu senti uma sensação de aperto que me encaminhou para o famigerado banco. Acabei sentando sem muita vontade de pensar em nada. Não resisti e chorei quando escutei a sexta badalada do relógio da igreja. Seria a hora em que o velho Ramiro se encaminharia para casa. Era uma tarde vermelha e fria, com poucas pessoas corajosas a ponto de ficarem à mercê do inóspito ambiente que se formava ali. Subitamente me veio na lembrança uma frase da carta enigmática: “Sempre fui um ser passivo, daqueles que esperam por algo.” Questionava o que aquilo significava. Esperava pelo quê, precisamente? Olhei ao redor: para os pombos que já não haviam mais ali, para as flores apagadas dos canteiros, para os transeuntes alienados à minha presença. Minha garganta se apertava mais e mais à medida que tudo ao redor me forçava para a mais solitária e escura solidão. Por um momento senti-me como o antigo dono daquele banco e compreendi o que ele esperava: alguém, algum indício de que ele ainda estava vivo. Esperava que alguma boa alma o acolhesse nos trilhos de seus destino e desse um lugar em seu coração. Talvez um amigo, ou quem sabe um inimigo. Um amor para confortar as tardes frias que lhe cortavam o rosto, ou para sorrir com ele aquecido pelo sol do meio dia. Eu nunca soube ao certo quais foram as dores pelas quais aquele homem passou, nem os verdadeiros motivos que ditaram suas ações estranhas. Mas soube de sua solidão no mesmo instante em que coloquei meu corpo no banco onde ele havia vivido boa parte de sua existência. Não digo que aprovo sua conduta. Esperar que alguém entenda suas dores e suas alegrias é uma tarefa suicida. Ninguém sai por aí perguntando para um desconhecido se ele precisa de um amigo, por exemplo. A passividade do velho Ramiro era esta: a espera pelo amor, pela amizade, que ele considerava algo real, em sua imperfeição e incompletude. E o triste da história é que ele esperou em vão. Algo trágico, já que ele sabia da existência daqueles sentimentos no plano em que vivia. Pergunto-me qual a causa de sua recusa em criar forças e sair atrás de seu próprio destino. Mas esta é uma indagação que me foge o alcance. Por isso não o trato como um covarde, apensar de muitas vezes pensar que ele agiu como um. Mas a dor de imaginar uma espera sem fim, uma espera vazia me causa lágrimas até hoje e o personagem do homem do banco, protagonizado pelo velho Ramiro ainda faz meu coração pensar nas difíceis e muitas vezes conturbadas relações humanas. Em como em tantas ocasiões ficamos sentados a esperar que as coisas sejam diferentes, que as pessoas sejam diferentes. Preferimos a quietude do repouso ao agonístico desconhecido da ação. Preferimos pensar que as coisas mudam por si mesmas. Preferimos imaginar que as coisas não podem ser piores do que já estão e nos resignamos a concordar que vivemos a pior das existências. Preferimos maldizer as chances que passam por nossos olhos enquanto estamos com eles cerrados. Preferimos esperar pelas palavras dos outros do que dizer aquelas que estão trancadas em nossos corações. Preferimos pensar que a solidão é um fantasma eterno que nunca nos abandona do que alçar os arriscados vôos aos corações dos outros. Preferimos ficar imóveis como criaturas do banco, sentadas no frio da existência que não tem uma razão, pelo menos uma razão feliz.

Humana Indiferença ou: Eudaimon


Seria ele feliz? Era o que eu sempre me perguntava todas as vezes que o via cruzando a rua da minha casa.
Eu não era feliz. Disso eu tinha certeza, e por isso mesmo me pegava em várias ocasiões imerso nesta inveja tola de quem com o olhar amaldiçoa o que não possui. Talvez em consequência deste sentimento é que me mantinha tão ocupado na tarefa de comparar minha infelicidade com a dos outros. Criei escalas de felicidade e de tristeza baseadas nas atitudes e posturas das pessoas – nunca no que diziam. Aliás, coisa que aprendi é que em vários casos a felicidade de alguém é inversamente proporcional à intensidade com que ela diz: “sou tão feliz!”. E com esta arte de mensurar um sentimento eu seguia minha vida miserável de rancoroso.
Voltando à minha pergunta inicial – que sempre foi a pergunta por excelência da minha vida – eu não conseguia deixar de pensar o que significava qualquer coisa que fosse para aquela criatura.
Ele não ligava para ninguém e aparentemente não se importava com o que pudessem pensar de sua aparência ou de seu modo de vida. Mantinha algumas obrigações que sempre realizava ao longo do dia, mas era somente isto. Na maioria do tempo se aventurava a fazer o que passasse pela sua cabeça. De manhã acordava fazendo barulho; eu sabia disso porque morava perto de onde ele ficava. Imaginava sempre que muitas pessoas não gostavam disso, mas ele nunca sequer fez menção de mudar seu jeito por causa dos outros. Sempre manteve a mesma postura apesar das ameaças. Mantinha um andar apressado e eu raramente o vi em passos de pensador. Como não trabalhava, vivia de favores e quem mais lhe ajudava era um velho que mantinha uma modesta venda perto de casa. Usava sempre o mesmo método: aparecia na porta do estabelecimento calado. Não mencionava nem sua chegada, também não fazia cara de piedade. Seu semblante permanecia sereno, calmo – algo raro para um estômago acostumado a tão pouco. Conseguia o seu punhado assim: inerte, e enquanto comia com uma velocidade felina e desajeitadamente desesperada seus olhos castanhos quase vítreos não davam importância aos outros olhos multicoloridos que o observavam com aquele ar de asco que é habitual sentir aqueles que são pregadores dos bons costumes e da boa etiqueta – ficava a imaginar eu aqui com meus botões se eles sabiam que a única regra moral que a fome conhece é a da saciedade.
Ninguém destratava aquela alma, mas também ninguém o tratava como uma criatura existente e talvez fosse este fato que mais me incomodava quando pensava naquela minha velha pergunta: “seria ele feliz?”. Apenas um dia tive uma resposta satisfatória. Era um dia de chuva, dia cinzento de uma segunda-feira mal-humorada. Pela janela da minha casa eu podia observá-lo atentamente: caminhava na mesma cadência apressada de sempre, olhando para o chão – o que ele procurava naquele cimento eu nunca soube ao certo. Enquanto isso os pingos frios alcançavam seu corpo encharcado, mas ele mantinha aquela mesma feição inexpressiva que apresentava sempre. Não me contive, tinha de saber e quando dei por mim já estava na rua, indo ao encontro da esfinge que insistia em negar a resposta à minha cruel dúvida. Estava a três passos de encarar o incômodo vizinho quando ele parou e fez questão de me lançar um olhar tão gélido quando o ar que fatigava nosso corpo. Detive-me por impulso e meu ventre doeu e meu coração disparou – não sabia exatamente bem o motivo. Era um momento constrangedor aquele para mim certamente e ele continuava ali a me encarar sem nada dizer, mas já me questionando um silente: “que fiz eu de errado agora?”.
Não consegui sequer mover meus lábios para responder ao meu inquisidor, simplesmente não dava. Aquela feição amendoada me dizia coisas, os arcos caídos que delineavam dois olhos cansados, congelados por uma espécie de desligamento do mundo – talvez fosse o desejo de se distanciar da dor, não sei. Eram duas janelas que apontavam para lugar nenhum: simplesmente mantinham-se fechadas, como que escondendo do mundo a alma daquela criatura. Mesmo assim eu conseguia enxergar algo que me transtornou de tal maneira que fiquei feliz naquele momento por ser uma pessoa triste: o que ninguém conseguiu interpretar naquele rosto, o sussurro que ninguém escutou daqueles olhos que gritavam para serem decifrados era a consternadora constatação de que ele não era feliz, nem tampouco triste – era indiferente.

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Se há uma coisa que aprendi com a tristeza é que ela pode ser em muitas ocasiões mais frutífera do que a felicidade. Nisto sou experiente, e talvez o tempo tenha colaborado para que este velho não coloque tantas esperanças num sentimento que não chegou a sentir muitas vezes. A tristeza sempre foi minha companheira e nunca me abandonou quando precisei dela. Contudo, a indiferença, esta ausência total de afetos bons ou ruins, a anulação consentida do ser perante o mundo, isto é outra coisa. Eu sempre achei que as coisas devem necessariamente afetar as pessoas, caso contrário existe algo de muito errado.
Foi curioso como aconteceu. Justamente no dia daquela chuva, quando finalmente entendi o que se passava com a peculiar criatura é que houve o acidente. Um carro, sem pretensões homicidas, talvez distraído pelo celular que seu dono atentamente atendia, esbarrou ligeiramente em seu corpo indiferente à chuva e ao frio... e à solidão, lançando-o a alguns metros. O carro, claro, cúmplice de seu condutor, não deu muita importância ao acontecido e prosseguiu viagem como se nada tivesse ocorrido, uma rápida experiência acerca da sensibilidade humana. Eu não entendia, em minha compreensão parca do mundo dos homens, como alguém caído no chão, ferido e gritando poderia se equiparar a nada para alguns. Mas existem tantas comparações insólitas no reino humano que me preocupei em socorrer o pobre infeliz a ficar divagando sobre o acidente.
Pode ser que alguns tenham visto a cena, e que outros tenham escutado os lamentos, mas somente eu, de todos que tinham os olhos e ouvidos para o acidente, fiz algo. Uma estranha contradição, já que meu rancor nunca me permitiu ser altruísta. Talvez fosse a curiosidade de querer perguntar para aquele indivíduo sobre sua indiferença.
Recolhi seu corpo ferido do asfalto enquanto observava seu semblante. A agonia da dor havia passado e ele voltava a manifestar aquela ausência de afeto no rosto. Quando o socorri ele não me disse nada, nem tampouco eu a ele. Ficamos apenas a nos olhar, perscrutando paralelamente o espírito um do outro. Existem “almas” que parecem compreender o clamor implícito de outras com tamanha destreza que chego a quase duvidar de meu ceticismo sobre a existência dessa substância no mundo. 
O momento cinza, coberto pela chuva fria e sustentado por aquele palco onde os expectadores insistiam em cobrir seus rostos foi o instante no qual nossas almas se comunicaram. Por um momento senti um aperto grande no peito e esbocei um sorriso – seria felicidade? A criatura pareceu corresponder e abanou sua cauda pela primeira vez – seria algum tipo de afeto?
Quando voltei para casa com aquele cachorro nos braços ele mantinha ainda aquele semblante distante e desconfiado, e eu também carregava a mesma tristeza costumeira. Apenas uma coisa havia mudado: o fato de que não desejávamos mais deixar de compartilhar um com o outro aquela cumplicidade esboçada na primeira troca de olhares. Eu não queria perder aquele sentimento que encontrei dentro de suas íris e talvez ele não quisesse se afastar de uma companhia que o fizesse voltar do limbo no qual sempre estava.
Felizmente com ele não havia acontecido nada grave e eu decidi, contrariando minha índole rabugenta, que ficaria com ele em casa até que ele recobrasse a saúde totalmente. Ficamos todavia juntos por mais de dez anos e quando eu me fui, poucos meses depois de seu óbito, para o outro plano, fui enterrado, segundo minhas próprias ordens, ao lado dele, que a partir do nosso primeiro encontro chamei de Eudaimon em homenagem a tudo o que posteriormente senti ao seu lado. Espero que ele tenha se tornado ao menos uma essência menos indiferente ao mundo junto a mim. Era o mínimo que eu poderia ter feito por alguém que me livrou do claustro da eterna tristeza.

Silêncio

Não se importava de ficar horas ali. Aliás, para ele aquilo era um bálsamo, um entorpecente.
Sentado num banco qualquer, numa das incontáveis estações alojadas abaixo do tapete cinza da cidade, o homem observava o fluxo infinito de feições que deslizavam de um lado para o outro, subindo e descendo escadas, entrando e saindo dos trens. Contudo, não era esta dinâmica aparentemente caótica que interessava ao homem observador e entenderemos, ao descer os olhos até algumas linhas abaixo, como seria mais prudente chama-lo de homem auscultador. Isto se faz perceber pelo fato de que para ele o fenômeno do movimento pouco importava, ou importava enquanto condição para outro tipo: o sonoro. Por trás do contato ríspido dos trens com os trilhos, do atrito da borracha dos sapatos dos transeuntes com o solo, do abrir e fechar das portas metálicas, havia o interesse no silêncio produzido por toda aquela algazarra, algo que talvez possa soar contraditório para a maioria, mas não para o homem. Ele era o ouvinte mais atento de todos que compartilhavam do mesmo lugar. Para o homem auscultador, cada som que roçava seu ouvido significava a paz silente que ele tanto procurava. Assim era que as vozes das pessoas em seus telefones portáteis eram como um coro ressonante a reproduzir a inebriante canção do nada. Os diálogos estrondosos, as risadas estridentes, as calorosas discussões, o encostar de mãos, de pernas, dos tecidos mais variados com a pele, os passos apressados a percorrer toda a extensão da plataforma coo cavalos de combate rumando para suas batalhas, as engrenagens a tilintar dentro das roletas, indicando a fuga de algum músico ou a chegada de mais um componente daquela insólita máquina de sons coletivos, os avisos sonoros a repercutir ad infinitum a mesma nota monótona: tudo naquele lugar, para os ouvidos do corpo e da alma do homem que permanecia sentado significava apenas uma e mesma coisa – a imersão absoluta no silêncio gerado por aquela cacofonia moderna. Todos aqueles sons, dos infra aos ultra perpassavam seu corpo, acariciando sob a forma de ondas todo o seu ser e levando-o ao aliviante torpor que ele tanto almejava.
Aquele causticante barulho que a maioria espera desesperadamente cessar era o seu nirvana, seu paraíso ou, se tais palavras forem muito fortes para a ocasião, que seja então a fuga de um outro silêncio, que para o homem era de natureza dolorosa e mortal: o silêncio do homem a sós consigo mesmo.
Para o auscultador, os barulhos serviam como anulação deste tenebroso companheiro inseparável que o assombrava todas as vezes que sua sinfonia se encerrava, a canção que o fazia esquecer os gritos de seu silêncio interior, o paradoxo silente que abafava os clamores de uma voz que berrava aos quatro ventos as verdades que o homem insistia em deixar enterradas no mais profundo abismo de sua alma.
Para ele, esta inversão ontológica tão necessária era o que o mantinha são, apenas a alguns passos de ser consumido pela loucura, a loucura do seu silêncio ensurdecedor e que ele negava veementemente, procurando em todos os ruídos que sus ouvidos alcançassem o silêncio mais almejado por quem quer fugir daquilo que se esconde bem lá no fundo. Aquele homem preferia o barulho de tudo ao seu redor, pois era o que o levava ao vácuo de sua existência, onde som algum poderia alcançá-lo, e quando dizemos “som”, nos referimos ao fruto maduro que somente nasce nas estações mais gélidas de um espírito – aquilo que muitos chamam de consciência de si. Era melhor assim, sabe-se lá os perigos e os sabores que tal fruto possui e em se tratando de sentidos, o homem não queria arriscar. Talvez por isso consumisse tantos doces, quereria ele se desvencilhar do amargo que a vida revela aqueles que a provam? Mas isto já seria outra história, e o tempo e a vez dos sons se extinguiram há muito na mente do pobre homem...

A Prensa ou: Desabafo

No começo foi um desabafo. Alguns goles transparentes que dilaceravam sua garganta e entorpeciam suas aflições. Era porque a vida era dura naquela época e ele não possuía os cabelos brancos o suficiente para não cair na tentação de uma pseudo-esquiva do mundo. Num piscar de olhos ele possuía mulher, filhos e toda a bagagem que a vida oferece junto com as vantagens da gregariedade e ainda assim os desabafos continuaram.
Trabalhava com caminhão. Ele sabia que não precisava mais daquelas escapulidas temporariamente erradicadoras de sofrimento. Possuía noção de que conseguia muito bem digladiar com a realidade e sair vitorioso, a despeito das cicatrizes que ela deixaria em seu corpo – e principalmente em sua alma. Mas então por que esta anti-vontade que acometia todas as células de seu ser? Havia sucumbido à escuridão que fermentava em todas as suas veias e percorria completamente o seu corpo.
Haveria de remover o vício através de uma vontade inquebrantável. Ele necessitava disso, afinal agora possuía mulher, filhos e toda a bagagem que a vida oferece junto com as vantagens da gregariedade. Contudo, toda vez que ele subia na cabine do caminhão, toda vez que colocava a mão no câmbio para engatar o veículo subia-lhe um desespero daqueles que não se sabe bem por que vem, mas quando chega, chega onipotente. E ele mais uma vez sucumbia ao afã de desabafar aquilo que ele não precisava mais expurgar.
Repetidas vezes pensou em buscar ajuda, se tratar, extirpar a violência e o engodo que criara para si mesmo, mas quem iria cuidar das coisas para ele? Quem seria o arrimo em seu lugar? Ninguém... e ele possuía mulher, filhos e toda a bagagem que a vida oferece junto com as vantagens da gregariedade. Não, não tinha tempo para isto. Mas então o que fazer? Como lidar com a prensa do mundo caindo sobre suas costas? Não havia outra alternativa a não ser segurá-la com toda sua força, afinal os humanos compartilham um destino parecido com o do titã Atlas, que sustentava todo o peso do mundo em seu dorso. Aparentemente os humanos precisam fazer o mesmo com seus pequenos, mas valiosos universos. Além do que ele tinha mulher, filhos... e a prensa.
Teria que ser na raça. Ele seguiria em frente apoiado no amor que sentia por sua família e de vez em quando pararia para desabafar um pouco. Tudo ficaria bem.
Foi numa dessas paradas que o destino resolveu brincar de queda de braços com ele e, com toda a força que ele mantém sobre os homens acabou vencendo o embate e nos destroços do que costumava ser um veículo, uma vida que lutava para se manter de pé se esvaía inexoravelmente. E o último mantra que ninguém conseguiu escutar daquele pobre moribundo era algo como: “Não posso morrer ainda... tenho mulher, filhos...”.

CRÔNICA: Quando as coisas quebram

Bem, esta foi uma crônica que escrevi para um jornal da região... não foge do tema do blog que são contos baseados no cotidiano. Bom, chega... boa leitura e espero que gostem!


Quando as coisas quebram
Israel Fabiano Souza

A morte de alguém precioso e necessário; um acidente; um rompimento com um companheiro de décadas (ou de dias, quem sabe); uma carta de demissão; um paradigma desacreditado; uma palavra: qualquer coisa pode servir para que algo em nós se quebre.
Acredito que vivemos correndo a vida inteira deste evento e muitas vezes falhamos. Ele é inevitável e, para aquele que aqui escreve, tão certo quanto a morte. Quem nunca padeceu desse acontecimento que atire a primeira pedra, e com isso quebre algo ao redor de si. Sofremos desse trágico fato e por mais que tentemos esquecê-lo, embriagados nas conquistas e vitórias de nossa vida, ele sorrateiramente nos espreita em tempos sombrios e nebulosos. Quebramos nossos corpos, quebramos nossos corações, nossas vontades e nossos sonhos. Muitas vezes também quebramos nossas vidas, as vidas de outras pessoas, o mundo. Algumas vezes as pedras têm como alvo a nossa direção, em outras circunstâncias somos nós que nos tornamos os projéteis que fatalmente quebrarão algo.
Não olhamos com bons olhos quando algo se quebra. As coisas aparentemente devem ficar em seu estado original, nunca dilaceradas e em pedaços. Estamos acostumados a pensar assim. Nossa experiência histórica nos mostra que o fragmento, o pedaço, a parte, nunca supera a beleza apolínea do todo, da forma perfeita, do completo. E com isso associamos (ou talvez seja mesmo uma relação de causa e efeito e não apenas uma associação psicológica) a dor, o feio, o incompleto e imperfeito, o inacabado ou (para resumir numa palavra) o quebrado, às dores que experimentamos no decorrer de nossos anos neste mundo.
Mas e o que fazer quando algo assim acontece? Quando só nos sobram apenas os extratos da coisa mesma, quando ela já não é mais reconhecida como aquilo que era até então? Certamente algo assim vem acompanhado da dor, da agonia, da ausência de sentido e de um estranho sentimento de estar flutuando num lócus sem fundamento, como se tirassem de nós o chão que pisamos ou os pés que nos auxiliam a caminhar. Penso nas vezes que isto aconteceu comigo e sinceramente não tenho uma fórmula precisa. Todo quebrar é único e necessita de um tipo de reação, e o contraditório disso é que não estamos preparados para o momento, nunca estamos pois ele vem sem nos avisar. Tudo o que fazemos quando as coisas quebram é inicialmente tentar se convalescer da dor que isto faz surgir em nosso âmago. A dor da questão tão angustiante que a acompanha: “e agora?”. Muitas vezes esgotamos nossas forças no primeiro momento e nem sequer contamos com um resquício delas para continuar a viver. O vazio que algo assim deixa em nós é tão grande que se nosso tino se aventura nas malhas do desespero se perde para sempre nos confins do desânimo, da loucura e da derrota. Tudo o que resta a fazer é se ajoelhar e catar os cacos que ficaram, os fragmentos que insistem em nos lembrar que a despeito do que aconteceu a correnteza da vida flui sem parar e se ficamos paralisados a ponto de transformar esses cacos em grilhões nunca saímos do lugar.
As coisas quebram, e é isto uma das coisas que nos adverte que somos humanos, não deuses. A nossa tragicidade foi tão perfeitamente colocada pelos poetas gregos que dizem que só somos trágicos porque somos finitos. É esta finitude que nos define e da qual muitas vezes temos medo, mas é esta mesma finitude que nos faz criar forças para enfrentar o escuro futuro com bravura, pois o ser humano procura mesmo sem saber criar um sentido naquilo que faz, um roteiro que possa ao final de seus anos na terra repassar e enfim dizer: cumpri meu papel de homem. Talvez seja esta a forma de nos curvarmos mais honradamente à morte, a maior das maiores quebras.
Se as coisas quebram, certamente é porque são frágeis, e é na sua fragilidade que reside sua importância. Como o cristal que não queremos ver em pedaços no chão, também não queremos nossa vida – nela inclusas todas as coisas caras para nós, aquelas que quebram, conseqüentemente - esfacelada e espalhada aos quatro cantos, desfigurada pelas abruptas fissuras que insistem em feri-la. Mas ela se quebra, com já disse. Só nos resta a força para enfrentar estes rasgos em nossa existência e a delicadeza para entender que são estas coisas que fazem com que percebamos o que nos é necessário e o que nos é prescindível, o cristal e o vidro. Amemos nossas caras coisas, enquanto ainda jazem inteiras. E quando se quebrarem, que haja doçura na tristeza, e sabedoria em saber colar as peças, uma por uma, mesmo que elas não se encaixem mais como antes, ou então determinação de jogar fora aquilo que já não vale mais a pena. Pois existem coisas quebradas que valem a pena ser consertadas e outras que é melhor que sejam esquecidas no lixo. E assim nossa vida segue.

Felicidade Besta


Eu odeio o dia cinco de cada mês, e por uma razão bem simples: é o dia em que preciso ir ao supermercado fazer a compra mensal. Não que eu não goste de tal tarefa. Pelo contrário. Isto me livra de pagar um imprestável qualquer para realizar o serviço – desperdício de dinheiro na minha opinião. Além disso, a inútil da minha empregada está muito aquém de conhecer meu gosto refinado. É algo que somente eu estou apto a fazer, por esta razão vou pessoalmente naquele lugar.
Dentre todas as coisas da vida, aquelas pelas quais sinto mais asco são as sem sentido. Não há nada mais patético do que aquilo que não possui um pingo de razão dentro de si para existir. É por isto que odeio o dia cinco, porque é neste dia que eu tenho que encarar o idiota do açougueiro. Ele é sem sombra de dúvidas o ideal encarnado da desrazão. Uma anomalia, uma aberração que não deveria ter nascido, mas que infelizmente me afronta todos os meses da minha vida com aquele sorriso branco, aquela voz firme e alegre, a face corada, os olhos brilhantes a encarar a íris dos clientes, as palavras educadas e a disposição constante para o trabalho. Isto porque simplesmente não há razão para tal serviçal ostentar toda aquela felicidade boba em seu rosto.
Entendam: não sou contra a felicidade de ninguém. O que não suporto, como já disse, é haver felicidade sem razão, como era o caso do açougueiro. Até hoje eu não posso entender como é que os músculos daquele rosto conseguem se articular para sorrir, é simplesmente incompreensível. Uma vida medíocre adicionada de várias tragédias não deve ter como resultado um estado de alma tão elevado e, contudo, é o que acontece. Digo isto pelo fato de que conheço a vida deste homem e nada nela é sintoma de felicidade e sim de piedade. Aliás, se há algum sentimento que deveria resumir a estadia do açougueiro na terra, este sentimento certamente é a piedade. Senão, que melhor palavra para definir uma alma castigada pelas intempéries do mundo, que passou fome e sede quando criança, que sobreviveu à chegada das doenças que por pouco não tomam sua vida devido à negligência da família. Que teve um pai alcoólatra e uma mãe drogada e foi obrigado a morar com parentes que nunca o reconheceram totalmente. Que sofreu discriminação pela cor que o destino lhe vestiu e depois mais discriminação pela situação social que sempre foi desfavorável. E depois, quando a infância e suas máculas o deixaram em paz com seus pelos crescidos e a esperança de uma nova vida o aguardava, ele viu nascer, crescer e se expandir o amor na forma de uma mulher. Só que para ele as coisas nunca foram simples e ele presenciou também o ocaso deste sentimento na forma de tragédia e morte.
Não. É inadmissível que uma pessoa assim seja feliz e meu estômago ferve só de lembrar da solicitude com a qual ele me atende. Tamanho atrevimento é agressivo e asqueroso porque me sinto mal em compartilhar um sentimento com uma pessoa desse tipo. Eu sim, mereço ser feliz! Pela minha condição financeira, intelectual e social. A felicidade em mim transborda como um rio cheio de afluentes, é caudaloso. Sou digno do estandarte da alegria autêntica. Aquele aborto que o açougueiro finge ostentar – aquilo é a farsa mais vil que já se inventou no universo. É impossível que alguém com o seu histórico de vida seja feliz. Aquele jeito cordial não me engana: é um meio para disfarçar toda a tristeza que carrega dentro de si. Deve ser isso, afinal que mais seria? Felicidade? Não me façam rir! Nunca! O “obrigado” que ele diz para todos os fregueses da fila deve estar carregado de um rancor imenso, uma raiva acumulada pelos anos que nunca foram gentis com ele. Ah sim! Isto explicaria tudo! Um homem triste, colérico e ressentido que sabe disfarçar sua frustração com a máscara da sua felicidade besta. Não estarei enganado. Repito: deve ser isso certamente. Ele não merece a felicidade. Não há como eu estar enganado a respeito disso.
Agora entendem minha queixa? Compreendem a causa de minha raiva? Aquele engodo a que chamam de açougueiro nada mais é do que isto: uma triste contradição que não sabe de sua condição neste mundo e insiste em realizar um papel que não lhe cabe. É por isto, como disse, que o dia cinco de cada mês me é tão desgastante. Que ódio.

Inexistência ou: O Caleidoscópio e a Rosas


“Você não é nada!!”
E de tanto escutar estas palavras da boca dos outros ela inferiu que aquilo era uma verdade absoluta.
“Eu não sou nada!!”
E a transferência do pensamento para aquele pedaço de papel regado à lágrimas era o cume de uma vida que lutava há muito tempo contra uma asserção cirurgicamente colocada dentro da alma e reconhecida como intrinsecamente sua. Contudo, teria ela as armas e os argumentos para vencer o embate? Como seria possível vencera si mesma se o adversário em questão possui exatamente as mesmas habilidades em seus mínimos detalhes? Certamente o empate seria inevitável e a frase incrustrada como uma joia inestimável permaneceria no mesmo lugar no qual colocaram. Além disso haviam os fatos e ela sabia que a realidade é a pedra magna que se coloca em cima de todos os discursos e ideologias.
Ela não era nada ou melhor ela era nada. E deveria ser diferente? Contaria alguma coisa todos os seus sucessivos e incontáveis fracassos? Nem mesmo um risco numa calçada com cimento fresco, ou uma parede suja com seu nome. Documentos são números e números são exatos e por isso não refletem a inconstância do ser humano – não contam como marcas. Mas e a história de uma pessoa, não poderia acaso já ser considerada em si uma marca? As dores e os prazeres não seriam indícios de sua escrita – mesmo que breve – no livro do mundo? Ela tentou procurar estas páginas, mas não as encontrou em lugar algum: era a realidade enterrando suas esperanças. Não havia provas de sua existência.
As pessoas temem desesperadamente a dor e o sofrimento, mas os aceitam de bom grado se a única opção a eles for a extinção da existência. Não digo a morte, mas a completa anulação de todo e qualquer vestígio vital, seja ele material ou simbólico. É por isto que aquelas palavras causaram tanto flagelo. O desespero de ler inúmeras vezes naquela folha a mesma frase que ela própria rascunhava significava nada menos que o consentimento da identificação com o que ela lia. Normalmente a última pessoa a negar a existência de alguém é ela mesma. Este ato é o mesmo que assumir que todos estão certos em negar o que já não existe, o último suspiro talvez de uma alma cansada de seguir em vão. Não que as pessoas estejam sempre certas a respeito dessas coisas mas como negar os fatos? Como deixar a realidade de lado? Não. Certamente ela já não existia – existiu algum dia de fato?
Aquelas palavras só comprovavam as suspeitas: eram a materialização do que até então ela não tivera a coragem de aceitar. E quanto mais aumentava repetidamente a desesperadora asserção no fragmento de papel, mais a sua existência tornava-se evanescente. Era como se a frase, replicada inúmeras vezes por uma mão trêmula e fria tivesse o poder de concretizar aquela constatação tão dilacerante. Ela ergueu o braço contra a luz: sua pele agora era apenas um traço preenchido por uma matéria já quase totalmente translúcida.
Ela não se importava com aquilo, ou pelo menos fingia não se importar. “Estou desaparecendo” – pensou – “e isto não me causa nenhum espanto”. A face exibia um semblante frouxo, nenhum músculo sequer tencionado, reflexo de seu pensamento atordoado.
Qual poderoso narcótico ofereceram-lhe sob a falsa alegação de ser a remissão de seus erros? Como se somente ela errasse, como se os seus pecados fossem piores do que os de todo o resto da humanidade. Talvez ela não acreditasse nisto, não fosse as inúmeras vozes a repetir sempre mais alto que ela não era nada.
Antigamente, quando ela era pequenina e usava aquele vestido estampado de rosas azuis com o cabelo solto a seguir o movimento do vento, ela se perguntava se existiam realmente rosas azuis em algum lugar do mundo. Gostava de pensar que não, que ela era a única a portar – mesmo que na forma de um desenho – aquelas peculiares flores: era o indício de que era única. Mais tarde, quando ganhou de presente do pai um caleidoscópio ficou maravilhada com o fato de que o mundo poderia ser colorido de uma forma tão intensa. Sempre que colocava seus pequenos olhos no orifício mágico os prédios, as ruas, as pessoas, tudo – dentro de sua cabeça – parecia maravilhosamente transformado num mar de formas e cores inimagináveis na realidade. Aquele era o seu jeito particular e único de ver o mundo. Quando ela lembrou daquele distante passado já havia desaparecido quase por completo a medida que a folha em seu branco inocente era invadido por um mar de preto que preenchia suas linhas horizontais com aquelas palavras nulificantes. Deu um sorriso cínico e cansado que quase não apareceu num rosto que já não identificava como existindo de fato, apenas uma parte insistia em manter a cor bronzeada que carregava consigo. O sorriso já era a anuência com o fato inevitável que em pouco tempo deixaria de existir. Tentou se desesperar uma última vez para ver se ao menos conseguia forças para lutar contra seu destino, mas até sua vontade ia aos poucos adquirindo um tom translúcido qual seu corpo: era sua alma que compactuava com a carne para que o desaparecimento fosse completo. Quantas linhas mais seriam necessárias para que tudo tivesse fim?
Não soube precisar quando, mas de deu conta de que o lugar ao seu redor ia também desaparecendo. O colchão todo marcado por sulcos – fruto do demorado tempo que ela permanecia deitada nele – tornara-se inconsistente em suas cores já tão gastas e desbotadas. A escrivaninha antiga de madeira escura só era possível de se distinguir agora por causa apenas de um encardido que era antes um vigoroso marrom. Assim também a cadeira, o guarda-roupa e o restante da parca mobília do lugar que já não existiam. As paredes não passavam de rabiscos imprecisos lutando desesperadamente para não deixar o outro lado à mostra. Ela achava aquilo quase sem interesse, como se fosse algo natural. Deteve seus olhos no fenômeno apenas o necessário para aceitar que seria melhor assim: era o mais sensato que tudo relacionado a ela desaparecesse também. Cogitava se teriam lembranças dela. Não! Nem as memórias a seu respeito seria poupadas. Se ela fosse realmente apagada do mundo, então tudo relacionado a si deveria perecer.
Apressou a escrever mais rápido. Sabia agora com certeza que se terminasse a última linha do afolha já quase totalmente preenchida acabaria com o martírio do mundo de suportar seu peso inútil e sem sentido. Faltava quase nada, mais alguns “Eu não sou nada” e estaria acabado. Ela já podia sentir um alívio com isso, por não suportar o fardo da responsabilidade de ser alguma coisa: era doloroso demais. Ou será que aquela dor era fruto da inveja e do ódio daqueles que queriam afirmar sua existência mesquinha ás custas da dos outros? Não dava mais para responder, já havia chegado na última linha.

Epílogo:
            Quando terminou de escrever a última palavra já não existia quase nada do que um dia fora sua vida. Já não sentia o vento que passava livremente pelo lugar que outrora fora uma casa. Nem os sons dos carros a cruzar violentamente a rua conseguiram chegar mais aos seus ouvidos. Soprou uma última vez o ar e ele não obedeceu. Seus lábios antes escarlates inclinaram-se levemente num esboço de um sorriso. Uma lágrima tentou rolar de sua face mas parou quando ela proferiu suas últimas palavras, que saíram apenas como um movimento dos músculos do rosto, pois já não havia uma garganta para fazer vibrar o som. Contudo, dava para ler, caso alguém ali soubesse ler lábios, o que ela tentava marcar em sua lápide mental como epitáfio: “Eu fui alguém”. No momento seguinte desapareceu e ninguém mais ficou sabendo quem ela era
            Na alvorada do dia seguinte, quando o preguiçoso dourado de um sol que demorava a nascer preenchia o telhado das casas com sua cor, um homem fazia a rotineira caminhada matinal quando foi surpreendido por um pedaço de papel que aderira ao seu corpo por conta de uma brisa que forçava-o contra si. Ia atirá-lo fora quando a curiosidade o invadiu e ele bateu o olho no que estava ali escrito. Repetidas vezes, de um canto ao outro do papel, uma frase sem sentido marcava tristemente a folha com uma letra corrida e despreocupada, quase ininteligível. “Eu não sou nada” era o que estava escrito. Subitamente surgiu na mente do homem a figura de uma mulher a dançar por um canteiro decorado com muitas roseiras com flores azuis. Acima de sua cabeça descia uma luz multicolorida que ao bater no chão formava nele inúmeras e indecifráveis formas que ficavam girando e passando por todo o canteiro. Os pés da moça eram tão leves que pareciam flutuar acima da grama verde. Seu sorriso emitiu uma alegria e uma tranquilidade tão grandes que quem a contemplasse naquele momento pensaria que para ela nada mais faltava na vida.
A imagem proporcionava ao homem uma voraz vontade de chorar, só ultrapassada pela felicidade que ele sentia ao se lembrar do semblante da moça despreocupadamente a sorrir, um semblante que ele não conhecia mas que inexplicavelmente lhe proporcionava um certo saudosismo. Decidiu então que guardaria aquele insólito objeto, dobrou-o e o colocou numa das repartições de sua carteira. Daquele dia em diante, a cena da mulher a dançar sorridente cercada de rosas azuis nunca mais abandonou os pensamentos do homem.